domingo, 21 de julho de 2013

O Realismo Literário e as Obras de Martin - Comparação entre Dom Casmurro e ASOIAF

"Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro."
~ Dom Casmurro, Machado de Assis




A literatura fantasiosa de George R. R. Martin apresenta evidentes similaridades com o realismo literário, não apenas em suas descrições por vezes bastante minuciosas, ou pela elaboração dos aspectos psicológicos dos personagens e até mesmo pela quebra dos paradigmas do romantismo presente em suas obras e no realismo. Não bastando tudo isso, há personagens que podem se refletir em reconhecidas obras do movimento citado.

Como um movimento artístico, não apenas literário, o realismo apresentou-se na Europa a partir das últimas décadas do século XIX, predominantemente na França, espalhando-se para os outros países. Aqueles que integraram tal movimento desejavam ir contra a artificialidade e o surrealismo do neoclassicismo e do romantismo, buscando trazer, através da arte, a realidade de maneira menos distorcida e elitizada. E, assim, naturalmente, demonstrar as facetas não tão nobres dos seres humanos, protagonistas de sua expressão.

A respeito do reflexo do realismo nas artes brasileiras, pode-se dizer que o mais famoso integrante do estilo, quanto à literatura, foi sem dúvidas Machado de Assis. Usaremos Dom Casmurro para esta análise de agora.

Machado de Assis foi um dos mais importantes escritores brasileiros, com obras de renome internacional como Memórias Póstumas de Brás Cubas e o próprio Dom Casmurro, cuja narrativa repleta de digressões, sarcasmo e crueza aproxima-se um tanto do estilo literário de George Martin. É possível aferir dos livros do autor seu interesse cada vez maior de aprofundar a análise do comportamento do homem, revelando algumas características próprias do ser humano como o egoísmo, a inveja, a vaidade e a luxúria, todas encobertas por uma aparência boa e honesta, como é o caso do protagonista Bentinho, do romance supracitado.

Já George R. R. Martin afirma que em seus livros de fantasia não se apresentam heróis nem vilões. Para um escritor do gênero da fantasia medieval, isso é algo um tanto inusitado. Apesar das controvertidas atitudes, por meio da narrativa em pontos de vista de diversos personagens, somos capazes de fazer uma segunda, uma terceira e uma quarta análise dos desejos, caráter e objetivos de um personagem em questão, modificando completamente nossa opinião inicial. São os casos de Jaime Lannister, Theon Greyjoy e outras complexas figuras construídas e desconstruídas ao longo da saga.



"Com que direito o lobo julga o leão?" 
~ Jaime Lannister em A Tormenta das Espadas

Quando vamos para a cabeça de seus personagens, podemos ver o que eles pensam e não temos a percepção de que há apenas bons ou apenas maus…Não. Meus personagens não são preto e branco, como a fantasia tradicional clichê. Eu não tenho o lado típico branco, com pessoas muito boas, e o lado ruim, composto por pessoas feias e más, que só usam roupas pretas. Eu fui sempre muito impressionado por Homero e sua Ilíada, especialmente a cena da luta entre Aquiles e Heitor. Quem é o herói e quem é o vilão? Esse é o poder da história e eu queria algo semelhante nos meus livros. O herói de um lado é o vilão do outro lado.
Leia mais: http://www.gameofthronesbr.com/2012/10/entrevista-gigantesca-com-george-r-r.html#ixzz2Zh8KO6kB

Esta é uma excelente similaridade entre George R. R. Martin e Machado de Assis, especialmente quanto ao livro Dom Casmurro. O protagonista e narrador da obra é o mencionado personagem Bentinho, que se coloca em uma posição vitimizada perante seu amor insuperável por Capitu, par romântico do protagonista. Considera-se traído pela mulher, o amor de sua vida, por ver semelhanças físicas em seu filho quando comparado a seu melhor amigo, Escobar. Mas as desconfianças não vêm desse momento; Bentinho, desde criança, exibe um comportamento dependente e obsessivo, sentindo-se, por vezes, acuado pela astúcia natural da menina Capitu, travessa, capaz de enganar seus pais, mentir com facilidade, e outros atos 'misteriosos' para o personagem, criado de maneira conservadora por sua mãe religiosa, com ações superprotetoras e invasivas.

Assim, Capitu seria a "vilã" de Dom Casmurro, o pólo antagônico da história, e simultaneamente o interesse amoroso do protagonista. Seria o motivo do tormento de Bentinho, mas este não é um narrador confiável. Sabemos apenas seu lado da história, que pode ser apenas a faceta de um homem tornado mesquinho e atormentado por ciúmes patológicos e uma fixação obsessiva pelo amor de sua infância, capaz de transformar este sentimento antes puro em um vício, um vínculo doentio que mais o destrói do que o apraz. Inúmeros estudiosos da obra já afirmaram que a traição é inconclusiva, por conta da parcialidade do narrador, e da própria estrutura psicológica do personagem. A partir daí surge a dúvida: não seria na verdade Capitu a vítima de toda a história? Sabemos, pelo livro, que o casal se separa por conta, acima de tudo, da patologia ciumenta de Bentinho, impedindo qualquer tipo de convivência sadia e até mesmo de confiança mútua, posto que chega a extremos como desejar envenenar o próprio filho, supondo que a criança é fruto de adultério.

Tais desconstruções são também visíveis nos personagens de Martin. A ambivalência é aplicável a todos; não há um personagem totalmente puro e heróico em sua obra, assim como não há o típico vilão criminoso e megalomaníaco. Seus personagens são cinzas, capazes de agir de maneiras diversas, para o bem e para o mal, sempre oscilando entre um pólo e outro, e, portanto, comprovadamente humanos.

Além disso, as similaridades não param por aí; a construção psicológica do personagem Bentinho, antes um jovem inteligente, sensível e promissor, tornado um senhor amargo (literalmente, Dom Casmurro) pelas reminiscências de seu passado e a incapacidade de desapegar-se do mesmo, especialmente de sua obsessão amorosa por Capitu e sua possessividade incessante, assemelhando-se curiosamente a um personagem específico, inclusive por sua história de vida: Bentinho poderia ser, na verdade, refletido em Petyr Baelish, vulgo Mindinho.

Criado como agregado na Casa Tully em favor dos atos de seu pai, Lorde Baelish, na guerra das Nove Moedas, ajudando Hoster Tully, patriarca de tal Casa, Mindinho apaixona-se perdidamente por Catelyn, a mais velha das crianças, mesmo sabendo que seu sentimento era proibido; por ser quase um plebeu, um nobre nascido na mais pobre das Casas de Westeros, jamais poderia ter a mão de uma senhora de alto nascimento. Apesar disso, o personagem propõe um desafio para o noivo de Catelyn, Brandon Stark, o mais velho dos irmãos Stark da época, um guerreiro adulto, habilidoso, que vem a lutar contra si mesmo, um jovem rapaz franzino, um mero adolescente sem aptidão para as armas. Assim, perde o duelo de maneira tão agressiva e humilhante que, se não fosse pela interferência de Catelyn, teria sido morto.

Recuperando-se de seus ferimentos, o rapaz foi enviado de volta aos Dedos, sua moradia, e jamais viu Catelyn novamente, até os eventos do primeiro livro, A Guerra dos Tronos. Somos apresentados ao seu passado pelo ponto de vista de sua antiga amada de infância, que o via como um rapaz esperto, propício a travessuras, porém sempre contrito quando repreendido. Cat defende que ele a amava verdadeiramente, mas não sabemos dizer ao certo, uma vez que, novamente, só temos a visão de seu lado da história.


"- Petyr Baelish amou-me em tempos passados. Era apenas um rapaz. Sua paixão foi uma tragédia para todos nós, mas foi real, e pura, e nada de que se deva zombar. Desejava minha mão. É esta a verdade. É realmente um homem vil, Lannister.

- A senhora é realmente uma tola, Senhora Stark. Mindinho nunca amou ninguém a não ser Mindinho, e garanto que não é da sua mão que ele se gaba, é sim desses vossos maduros seios, da vossa doce boca e do calor que tem entre as pernas." 
~ Catelyn Stark, em diálogo com Tyrion Lannister, no livro Guerra dos Tronos


A partir de tais eventos, o personagem se transforma; torna-se um vassalo de Lorde Arryn, Senhor do Ninho da Águia, trabalhando em Vila Gaivota, território do Vale, pelo controle da alfândega local, onde ele aumenta as taxas em torno de dez vezes. Suas habilidades financeiras resultaram numa série de indicações, sendo inclusive convidado a tornar-se Mestre da Moeda, compondo o pequeno conselho em Porto Real, pelo Rei Robert Baratheon. Lá, sua influência cresceu com o estabelecimento de contatos e aliados, inclusive na Patrulha da Cidade, tornando-se também dono de inúmeros bordéis da capital.

Entretanto, jamais saberemos a visão de Mindinho. George R. R. Martin já avisou aos fãs que, nos próximos livros, não incluirá novos narradores na obra. Assim como Capitu, o personagem é um mistério; ele e Varys são estrategistas atuantes nos mais importantes fatos ocorridos dentro dos cinco livros, mas nenhum leitor é capaz de dizer, de fato, quem realmente são e o que em verdade querem. E, assim como Bentinho, é alguém que saiu de uma infância dourada, repleta de afeto e alegrias, para tornar-se um adulto no mínimo controverso.

A própria construção do personagem se dá pelo uso de diversas características típicas do realismo literário. Vejamos algumas aplicáveis e principais:

Oposição ao idealismo romântico, não havendo envolvimento sentimental: Mindinho nunca teve Catelyn, e, ao tentar a sorte como o perfeito herói romântico, pelo clichê do franzino garoto que desafia o homem forte que levaria sua amada, é quase morto, sobrevivendo apenas por conta da compaixão de Catelyn. Bentinho casa-se com Capitu, mas passa grande parte de sua vida marital especulando se sua esposa o amava tanto quanto ele a amava, e duvidando de sua fidelidade, especialmente após o nascimento de seu filho.
Representação mais fiel da realidade: as consequências de todas as ações típicas de um herói romântico apenas trouxeram a Petyr o fracasso. Todavia, ao corromper-se e tornar-se um indivíduo praticamente amoral, com posicionamentos niilistas e egoístas sobre o funcionamento social, consegue ascender e tornar-se um dos nobres mais influentes de Westeros. Bentinho, enquanto jovem, foi levado contra a vontade para o seminário, e, quando voltou, pôde casar-se com Capitu. Entretanto, a vida não foi feita de flores; temia que Escobar, seu melhor amigo, o qual se afeiçoara durante o tempo de seminarista, o traía com sua esposa, que inclusive teria tornado-se mais fria e distante quando o mesmo morreu tragicamente nadando no mar, em um dia de ressaca. Este foi o ponto alto para que a loucura obsessiva de Bentinho o levasse por completo, culminando com a destruição do que restou de seu casamento.
Romance é um meio de combate e crítica às instituições sociais decadentes, como o casamento: O platonismo impossível de Petyr é uma clara reflexão disso. Já em Dom Casmurro, a própria tragédia conjugal de Bentinho é o tema central do romance.
Análise dos valores burgueses com visão crítica denunciando a hipocrisia e corrupção da classe: George R. R. Martin constrói uma sociedade na qual os casamentos não passam de mero contrato, como assim o eram na Idade Média, e os laços por amor se concretizavam de forma escusa, ou não se concretizavam. Em Dom Casmurro, a família de Bentinho considerava Capitu pobre demais para ele, vendo a amizade dos dois com maus olhos.
Personagens analisadas psicologicamente: até mesmo os personagens sem ponto de vista, ou seja, sem capítulos narrados por si mesmos são controversos, com fragmentos ao longo dos cinco livros delineando seu passado e sugerindo porque são quem são e porque fazem o que fazem, como o caso do indicado. Já na obra de Machado de Assis, o narrador é o próprio Bentinho, o que nos permite mergulhar profundamente em sua personalidade controversa e difícil.



“O cantor de lorde Bracken tocou para nós, e Catelyn dançou seis danças com Petyr naquela noite, seis, eu contei. Quando os senhores começaram a discutir meu pai os levou para conversar em particular, então não havia ninguém para nos impedir de beber. Edmure ficou bêbado, jovem como era... Petyr tentou beijar sua mãe, mas ela o empurrou. Ela riu. Ele parecia tão ferido que achei que meu coração iria explodir, e depois ele bebeu até que desmaiou por cima da mesa."
~ Lysa Arryn sobre Catelyn e Mindinho jovens, em A Tormenta das Espadas


Curiosamente, a desgraça de Bentinho se dá por culpa de si mesmo. Não consegue lidar com o sentimento de inferioridade que sempre teve perante Capitu, perceptivelmente mais sagaz e independente, e muitas vezes sente-se menosprezado, não amado o suficiente pela esposa, chegando a possibilidade de ter simplesmente fantasiado o adultério que jamais existiu. Não há como se chegar a uma conclusão firme sobre a fidelidade de Capitu, mas pode-se afirmar tempestivamente que Bentinho, de certa maneira, enlouqueceu. O garoto antes apaixonado e inocente tornou-se um homem desconfiado e amargo, fechado no passado, incapaz de confiar na própria esposa, transformando sua paixão avassaladora em um sentimento de posse, rancor e ódio maiores do que toda a candura e pureza anteriores, que carregava em seu coração.

Para Mindinho, a desgraça foi a mesma. O personagem tornou-se um dos mais perigosos estrategistas políticos de Westeros, sem escrúpulos, de uma frieza maquiavélica, incapaz de sentir uma gota de arrependimento por quem derrubar em sua escalada ao poder. Em sua ganância destrutiva, a única capaz de despertar algum tipo de afeição e o resto do lado humano do personagem é Sansa Stark, a memória viva de sua Catelyn do passado, idêntica fisicamente à jovem moça que partiu o coração do pequeno rapaz de origem pobre. Foi salva de Porto Real por Lorde Baelish, que aparentemente deseja usá-la como ferramenta para espalhar seu poderio ao Norte de Westeros, uma vez que Sansa Stark pode ser a chave para Winterfell, em uma ação um tanto ousada para alguém antes tão calculista.

Ao mesmo tempo que Sansa pode ser um trunfo, é também procurada em todo o Reino, caçada pelos Lannister, que a consideram responsável pela morte do rei Joffrey Baratheon, sendo um risco muito maior do que o personagem se permitia antes correr. Teria algum motivo emocional nas ações de Mindinho, mesmo após tantos anos cultivando ações e desejos meramente egoístas? O que de fato motiva o "Bentinho" de George R. R. Martin?

"Petyr estudou-lhe os olhos, como se os estivesse vendo pela primeira vez. - Tem os olhos de sua mãe. Olhos honestos e inocentes. Azuis como um mar ao sol. Quando for um pouco mais velha, muitos homens irão se afogar nesses olhos."
~ Petyr Baelish em O Festim dos Corvos

“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me."
~ Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis

"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência."
~ Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis

E então? Sugiro uma pergunta menos repetitiva sobre Dom Casmurro, e uma sugestão sobre a saga de Martin: que conclusão tirar a respeito de Bentinho: vítima, vilão ou nenhuma das possibilidades? E sobre seu equivalente nos livros de Martin, tão misterioso quanto Capitu porém cuja personalidade e histórias passadas assemelham-se tanto ao controverso personagem de Machado de Assis?

Resta esperar que "a vaga que se retira da praia" traga consigo as respostas, ou que mantenha o mistério, tão fascinante e temível quanto as correntezas do profundo oceano...

sexta-feira, 19 de julho de 2013

A Romântica Idealização da Mulher Amada e a Quebra do Trovadorismo


A vida não é uma canção, querida. Aprenderá isso um dia, para sua tristeza...
~ Petyr Baelish "Mindinho" 

Não há como se falar de literatura medieval sem recordar do movimento do trovadorismo, representado especialmente pelo lirismo dos bardos e suas canções. 

O trovadorismo pode ser considerado a primeira manifestação literária da língua portuguesa, datado do século XII, na Idade Média, período em que Portugal estava formando-se nacionalmente, mas acabou por tornar-se um estilo adotado pela Europa em geral. É composto por grande dose de influência da religiosidade presente na época, por temas de amor nobre e subserviente, e por grande dose de romantismo poético. O platonismo e a felicidade do protagonista ou eu-lírico não se dão pela concretude do amor, muitas vezes irrealizável, idealizado, de forma que muitas vezes o propósito de um conto folclórico ou uma canção são de apenas dedilhar a história de um amor perdido, sofrido, mas não as consequências advindas para o personagem que o sente, ou o sofre.

Acostumamo-nos, entretanto, com o estilo de George R. R. Martin, que propõe uma visionária fantasia medieval crua e realista, mas, ao mesmo tempo, permite que haja momentos de candura na história, em meio ao tormentoso cotidiano dos personagens. Todavia, para cada ação e escolha passional, muitas vezes surge uma consequência não tão romântica quanto o ato que a promoveu.

Vejamos alguns exemplos:

- Robert Baratheon, líder de sua própria rebelião, derrubou uma dinastia secular do poder, tornou-se rei dos Sete Reinos, aclamado pelo povo, desejado pelas mulheres, glorificado por seu valor em batalha. Entretanto, cada um de seus atos revolucionários fora motivado não pelo desejo de salvar o povo da opressão do Rei Louco, apenas, mas sim por sua revolta contra o sequestro de Lyanna por parte de Rhaegar, e, mais tarde, por completa fúria decorrente da morte de sua amada. Robert não sabia, mas jamais fora correspondido, uma vez que Lyanna confidenciaria a seu irmão, Eddard Stark, em tempos passados, que Robert jamais se satisfaria apenas com uma mulher. Apesar disso, ele agarrou com unhas e dentes a paixão que tinha pela irmã de seu grande amigo, e, mesmo após todo o seu triunfo em sua conquista, nada superou a perda do único real objetivo que visava: ter Lyanna Stark ao seu lado. "Nem mesmo Sete Reinos preencheram o vazio que ela me deixou". A triste "balada" do amor perdido de Robert é a perfeita cantiga de amigo, com o eu-lírico masculino, lamentando a perda da amada. Mas Martin não aprova sentimentalismos, e desconstrói, ao longo da sina de Robert, seu amor incessante, digno de canções.

A partir da perda de Lyanna, Robert perdeu o amor que tinha à vida, que antes espelhava-se em seu físico forte e ativo, no seu bom humor e carisma que conquistava a todos, e foi, pouco a pouco, transformando-se por dentro e por fora em um rei negligente, desinteressado, amargurado e conformista. Tornou-se um beberrão, um homem muito acima de seu peso, e alguém que, infelizmente, vivia no passado. Perdendo, assim, o respeito não só de seus súditos como de sua própria família, morrendo de maneira indigna para com o homem que um dia foi, e que, infelizmente, partiu do mundo junto com Lyanna... Justamente a mulher que tanto quis e perdeu. A mesma mulher que, no fim da vida do triste Rei, este morreu sem lembrar-se de como era a aparência de seu rosto, fazendo cair por terra o ideal romântico do teor trovadorista.

"Quer saber a terrível verdade? Eu nem mesmo consigo lembrar-me de como era sua aparência. Tudo o que sei é que ela foi o que eu sempre quis. Alguém a tomou de mim e nem mesmo Sete Reinos preencheram o vazio que ela me deixou."



- Sor Jorah Mormont, apaixonado por Lynesse Hightower, teve um começo de relacionamento digno de qualquer cavaleiro do mais doce romance de fantasia medieval. Mas, novamente, isto é a escrita de Martin: tendo conseguido a mão da mulher que nomeou Rainha do Amor e da Beleza em um torneio, apesar de todo o início repleto de flores e lirismo, sua esposa não se acostumou com a vida na Ilha dos Ursos, considerando o lugar frio, pobre e triste. Jorah esforçou-se para reproduzir o estilo de vida rico que a moça vivia ao sul, como um esposo devoto e zeloso, mas apenas conseguiu arruinar a si mesmo financeiramente. Como última escolha, decidiu usar da escravidão, sumariamente proibida nos Sete Reinos, para recompensar seus gastos excessivos, indo contra seus votos e sua lei, desconstruindo a partir daí a figura do cavaleiro apaixonado, porém honrado. Tempos depois, seu suserano Eddard Stark descobriu sua manobra, e o condenou à morte. Jorah fugiu para o exílio com sua esposa, mas a realidade acabou por esmagar seu casamento: Lynesse o deixou, sentindo-se desencantada e insatisfeita, enquanto o antigo renomado cavaleiro ficou só, de coração partido. Anos mais tarde, Jorah transfere seu amor perdido para Daenerys Targaryen, a quem julga ser inclusive fisicamente similar à sua antiga esposa, mais uma vez fortalecendo a figura de idealização amorosa, uma vez que a rejeição sofrida não fora suficiente, tendo sido necessário substituir seu sentimento pungente para outra mulher semelhante a que realmente amava.

Torna-se, outra vez, o perfeito cavaleiro devoto, galante, capaz de tudo por sua Senhora, que não retribui seu amor, apesar de todos os seus esforços, considerando os avanços de Jorah insistentes e desagradáveis. Mais uma semelhança com o trovadorismo: vassalagem amorosa. Para piorar sua situação, Daenerys descobre que Jorah a traiu no passado, trabalhando como informante, e até considera dar-lhe uma segunda chance, entretanto, os sentimentos passionais de Jorah falam mais alto do que seu bom senso. Após uma missão perigosa, diz à sua Senhora que ela o "deve" perdão, devido ao seu amor e histórico de serviço fiel. Ela decide banir Jorah de seu serviço, jurando matá-lo se o ver novamente. Devastado pela pior das rejeições, Jorah parte, ainda mais humilhado e, mais uma vez, de coração partido.


"Você tem um coração gentil. Há vezes em que te olho e ainda não consigo acreditar que é real."


- Petyr Baelish, mais conhecido como Mindinho, fora, desde sua mais tenra infância, apaixonado por Catelyn, ao se conhecerem em Correrio. Junto das crianças Tully, tiveram uma amizade próxima, estando o agregado sempre presente junto aos três irmãos, levando uma vida alegre, felizes crianças do verão. Similaridades com o trovadorismo: amor impossível e platônico devido a posição social da mulher ser melhor que a do trovador apaixonado.

Cego de amor por Catelyn, Mindinho não valorizava o carinho especial que Lysa sempre teve por ele, e parecia ignorar a rejeição de Cat, tamanho era seu sentimento por ela, persistente apesar da impossibilidade evidente, e assim começa a desconstrução do "protagonista" trovador. Na 'realidade', o platonismo nunca é suficiente.



"Amei apenas uma mulher, eu lhe prometo... Só a Cat."


Assim como os outros dois personagens citados, Petyr tomou a atitude galante digna de um herói de melosas canções, desesperado, quando soube que sua amada seria desposada por outro homem que não ele.

Com todas as chances contra, e, apesar de reconhecidamente ter sido um rapaz esperto desde jovem, Mindinho propõe um duelo para Brandon Stark, no qual somente não foi morto pelas súplicas de Catelyn para seu noivo, implorando que não o matasse. Pelo insulto cometido à casa Tully, Petyr, depois de curado, foi enviado de volta aos Dedos - também pela afronta de ter desvirginado e engravidado Lysa, julgando ebriamente que estava com Catelyn.

Depois desses eventos, Petyr escreve uma carta para Catelyn, de conteúdo misterioso para os leitores, a qual a mais velha das Tully se recusa a ler. Apesar dos mistérios ao redor do personagem, entende-se que sua personalidade fria, calculista e vingativa é oriunda desses infortúnios do passado, fomentada pela humilhação de ser conhecido como "Mindinho", apelido criado pelo seu "irmão" de criação, Edmure, relacionado à sua origem humilde e sua nobreza emergente, sempre subestimado. Mindinho era uma piada para os Sete Reinos, pelos quais inclusive é célebre a historia de sua vergonhosa derrota perante os Tully e o noivo de Catelyn. Porém, considerando a persistência de sua fixação por Cat, refletida, no futuro, para a filha que é perfeitamente semelhante à Catelyn de sua infância e adolescência, Sansa Stark, é possivel aferir que o antigo amor puro de rapaz tornou-se algo distorcido, porém persistente ao longo dos anos, como uma obsessão.

Vê-se que este sentimento passou de, antes inocente, para algo destrutivo, quase, de tão remoído paulatinamente, misturado a um rancor tão imenso quanto sua paixão. Martin se aproxima assim ao realismo em prosa, presente em livros como "Dom Casmurro", sendo a figura de Mindinho perfeitamente comparável à figura amargurada do Bentinho adulto e solitário. Mindinho é o “Dom Casmurro” de ASOIAF, cujo amor incalculável por Capitu (ou Cat) transforma-se em um sentimento destrutivo, que o corrói por dentro, fechando-se no passado e nos delírios de um homem que adoeceu de paixão, perdendo a essência pura de menino e todas as possibilidades de uma vida por se realizar. Enquanto Bentinho está próximo à loucura, Mindinho é o contrário: nunca foi tão friamente racional como agora, tão gélido em suas ações que perdeu a possibilidade de empatia com qualquer um que não o lembre de Catelyn. Porém, são similares a respeito da destrutitividade de seus sentimentos incontroláveis, que lhes deixaram marcas e cicatrizes incuráveis, que não se sanam mesmo após anos e anos. Desconstruindo, assim, novamente, o ideário romântico e surreal da fantasia medieval clássica, na qual o personagem rejeitado aceita sua condição, mas mantém seu amor intacto apesar de irrealizado.


Os olhos de Catelyn ou os olhos de Capitu?


É interessante a ideia de Martin a respeito de algo que, na fantasia comum, é motivo dos maiores feitos e conquistas de muitos personagens, terminando por ser justamente o estopim para o contrário em sua obra. Martin discorda do romantismo literário, das canções de amigo e de amor e da possível felicidade e satisfação na exaltação da mulher amada; os personagens antes mais sentimentais e passionais acabam por descobrirem-se como os mais iludidos, quando a realidade lhes vem cobrar sua conta depois de seus atos motivados por nada mais além de sentimentos. A paixão arrasadora, incondicional, o amor persistente, tudo isso acaba gerando, na ficção de Martin, destruição, e não construção. Ao perderem suas amadas, as razões de seu viver, os personagens perdem-se a si mesmos, e seus sentimentos, antes puros, tornam-se distorcidos e doentios...